Entendo que é papel do Goyazes Festival de Fotografia contribuir com a formação da narrativa histórica sobra a fotografia em Goiás. Assim como a fotografia está ligada à ideia de memória, de arquivo, e de ligação entre tempos, o festival também é um lugar de rememorar, de apresentar referências do passado ao presente perspectivando olhar para o futuro, portanto, é lugar de construir uma teia temporal. É nesse sentido que a exposição do fotógrafo J. Craveiro, aqui apresentada, reúne um grupo de fotografias selecionadas dentro do conjunto organizado nas décadas de 1950 e 1990 pelo pesquisador Luiz Curado, trazendo ao público imagens realizadas entre 1911 e 1915.
Durante as últimas três décadas do século 19, na cidade de Goiás, foram instalados os primeiros estúdios fotográficos que começaram a prestar serviços à sociedade vilaboense. É necessário mencionar que a fotografia, como tecnologia de ponta, era naquele momento bastante cara, logo acessível somente às classes sociais mais abastadas. O pesquisador Luiz Curado cita a lista dos primeiros fotógrafos atuantes na antiga capital elaborada por Elder Camargo de Passos: procedente de Cuiabá, José Severino Soares inaugurou, em 1877, o estúdio fotográfico ligado ao consultório de dentista; em 1883 foi aberto o Photographia Goyana, estúdio de João Crisóstomo Moreira; três anos depois, em 1886, Alexandre Filemon Bernard instalou estúdio com seu nome; em 1890, J. Philemon montou o Photographia Central; dois anos depois, Philemon & Dores começou a funcionar como estúdio fotográfico e consultório de dentista. Dos cinco estúdios mencionados, dois estiveram envolvidos com consultórios de dentistas, fato que demonstra a prestação de serviços à classe que gozava da associação entre a boa aparência do indivíduo e o apreço por deixar-se retratar, mas também reflete a insuficiência do ofício fotográfico para sustentar a vida. No raiar do século 20, em 1901, José Alencastro Veiga (1878-1951) montou estúdio com seu nome que se tornou o mais longevo dos estúdios pioneiros, e, em 1908, com patrocínio do Governo de Goiás, editou o importante álbum Lembranças de Goyaz, com uma série de paisagens da capital, redimensionando no contexto goiano a importância da atividade do fotógrafo.
Foi nesse ambiente que nasceu e cresceu Joaquim Craveiro de Sá (Goiás, 1885 –Goiânia, 1973), cujo nome público ficou conhecido como J. Craveiro. Filho da classe média, recebeu boa formação, sendo titulado perito contador e diplomado, em 1909, bacharel pela Academia de Direito de Goiás. Desde 1906, quando prestou concurso, até 1944, quando se aposentou, seguiu carreira como funcionário público trabalhando na Fazenda Nacional, onde atuou em diversos cargos, de escriturário a oficial administrativo, na cidade de Goiás e no Rio de Janeiro, à época Capital Federal.
J. Craveiro tinha 25 anos de idade quando comprou, em 1910, o equipamento fotográfico das mãos do experiente fotógrafo Alexandre Filemon. Era uma “máquina-de-fole”, Sanderson Tropical, de fabricação inglesa, acoplada com objetiva alemã Carl Zeiss-lena, formato 13×18, com três chassis duplos e com adaptadores para chapas 9×14. Também adquiriu um disparador automático, que o permitiu se auto fotografar. Foi com esse equipamento que produziu, até que, em 1920, o vendeu a um viajante alemão que passava pela cidade de Goiás.
No período de introdução da fotografia na cidade de Goiás, a profissão de fotógrafo estava inserida no sistema econômico como trabalho liberal exercido com remuneração; sem pagamento tornava-se impossível manter a atividade de fotografar, pois equipamentos, negativos, materiais laboratoriais e impressão de cópias eram bastante caros e de difícil aquisição. Mas, para J. Craveiro fotografar não estava associado à noção de trabalho, era um hobby, e, também era um modo de olhar para o mundo e para si, uma paixão, no sentido que era um fotógrafo amador e fotografava pelo prazer de captar e revelar imagens, de fixar uma fração do tempo sobre a superfície do papel. Pela própria natureza amadorística, sua produção circulou em âmbito familiar e por isso está distante do público há tanto tempo.
Genro do fotógrafo, guardião do acervo de negativos em placas de vidro e de cópias em papel, biógrafo e organizador do livro Goyaz e Serradourada por J. Craveiro e poetas, o professor Luiz Curado informa que J. Craveiro aprendeu as técnicas fotográficas no convívio com dois dos primeiros fotógrafos de Goiás, aponta que Alexandre Filemon foi responsável pelo repasse dos fundamentos técnicos básicos, e que José Alencastro Veiga colaborou para o aperfeiçoamento do seu trabalho; comenta, também, que a relação de amizade entre os dois, Veiga e Craveiro, foi testemunhada pela cidade nos momentos em que juntos saíam para fotografar os mesmos motivos. Acredito que por ser mais velho e experiente, de olhar refinado e com grande domínio da arte de fotografar, Alencastro Veiga deve ter exercido forte influência durante a formação do jovem fotógrafo, que também se orientava por meio de informações que obtinha em catálogos provenientes da França e da Inglaterra.
A produção de J. Craveiro não é grandiosa quantitativamente e foi realizada em um período menor que uma década. Segundo Luiz Curado, data entre 1911 e 1918, sendo os anos de maior produtividade entre 1913 e 1915. No final de 1916, J. Craveiro foi transferido para o Rio de Janeiro, onde, no ano seguinte, trabalhou na recebedoria do Tesouro Nacional. Quando retornou a Goiás, em 1918, pouco fotografou. Observando a cronologia traçada por Luiz Curado, cogito que entre 1910 e 1912 se desenvolveu uma fase de aprendizagem para dominar a técnica, conquista feita a partir de 1913, e que, talvez, por sobrecarga de funções burocráticas tenha diminuído seu tempo para praticar a fotografia após seu retorno da temporada de trabalho no Rio de Janeiro, em 1918. As fotografias tardias são mais documentais registrando acontecimentos cívicos, solenidades e manifestações folclóricas, enquanto as do curso médio possuem caráter mais autoral. São desconhecidos os motivos que o levaram a declinar da fotografia e a vender seu equipamento, fato que depois veio a lamentar, segundo Curado. Também não foi esclarecido o motivo de não ter adquirido outro.
J. Craveiro foi um fotógrafo caprichoso, que buscava o aperfeiçoamento técnico, utilizando materiais químicos importados da França e da Inglaterra, além de máscaras de recorte que ele mesmo fazia, e de vinhetas de fabricação francesa ou alemã usadas para emoldurar as fotografias. Foi um homem de gosto refinado que ouvia música erudita em sua vitrola, e que dava vazão aos talentos manuais que possuía: tinha conhecimento das técnicas da marcenaria e produziu objetos de uso doméstico; apreciava fazer desenhos artísticos e geométricos; era dado a desenhar letras, sendo um precursor do designer gráfico, com um trabalho eclético resultado da fusão da art nouveau com a tipologia gótica e com o sotaque gráfico goiano.
Segundo Luiz Curado, a metodologia de trabalho de J. Craveiro incluía fazer anotações técnicas sobre as fotografias, registrando assunto, diafragma, velocidade, hora da tomada fixando T para tarde e M para manhã; a luz classificada entre: A para sol brilhante; B para sol com nuvens; C para luz difusa. As referências usadas foram extraídas de uma tabela contida em The Wellcome photographic exposure record and diary, publicada por Burrougs Wellcome & CO, Londres, 1914. Como buscava aperfeiçoamento técnico, comparava as anotações feitas em caderneta com os resultados obtidos nas imagens reveladas e impressas, e dessa forma analisava seu próprio procedimento de fotografar.
A fotografia de J. Craveiro exibe um grande enfrentamento com os problemas da luz. A cidade de Goiás tem uma luminosidade natural muito intensa, desafiadora, que era, no início do século 20, potencializada pelas paredes das casas e edificações institucionais, pintadas exclusivamente com cal branca, que funcionavam como superfícies rebatedoras de luz, aumentando o grau de dificuldade posto ao fotógrafo. Lembro do embate com a luz ofuscante presente na pintura Caipira picando fumo (1893) de Almeida Junior, revelando um calor escaldante que torna tudo dolente sob duras sombras. Em Goiás, a claridade é tanta a ponto de cegar, e isto traz problemas àquele que tenta tomar um instante de sua vida para transformá-lo em imagem. A luz exige que o fotógrafo tenha consciência do que está fazendo e J. Craveiro encarava as dificuldades realizando algumas fotografias que mostram seu confronto com a luz que é capaz de ofuscar a imagem e apagar o registro. E suas anotações certamente colaboraram para ele compreender como agir diante das complexas e adversas condições de luminosidade e de clima.
Ao longo do tempo, percebe-se o amadurecimento da linguagem visual e o aprimoramento técnico das fotografias, no crescente domínio das condições de luminosidade, na mudança de textura e uniformidade do grão da imagem, que respondem com maior precisão, definição e profundidade do campo. Uma linguagem caipira, no sentido da singeleza e da ingenuidade que a tornam interessante.Através de suas fotografias, J. Craveiro observa a cidade de Goiás, criada no século 18 durante a febre do ciclo do ouro, desenhada e edificada na fusão de princípios e métodos de construção e de urbanismo provenientes das culturas portuguesa e bandeirante, paisagem dominada pelos grandes edifícios coloniais, como Casa de Câmara e Cadeia, Palácio Conde dos Arcos, Quartel do 20, Igreja da Boa Morte e Igreja de Santa Bárbara, entre outros; cartografia sangrada pelo rio Vermelho, contornado pelo cais e cruzado pelas pontes históricas; cidade dos largos que concentravam a vida social: do Chafariz, do Rosário e da Matriz – no período em que J. Craveiro fotografava, a grandiosa Catedral estava em ruínas, havia desabado. Paisagem contornada pelos morros de perfil singular, como o Cantagalo, cercada pelos enormes paredões de pedra da Serra Dourada. Essa cidade colonial manteve-se quase inalterável do século 18 até o começo do século 20, quando começou a sofrer transformações com a construção de novos equipamentos públicos, como o coreto e a fonte de bronze do largo da Matriz que mostram influências do estilo art nouveau, o prédio da Prefeitura e o Asilo São Vicente de Paula, e com a introdução de um novo modelo arquitetônico, o ecletismo, que teve ampla aceitação e modificou a fisionomia urbana, sendo empregado no importante edifício do Hospital São Pedro D’Alcântara que fora reformado na primeira década do século 20, e no recém construído Gabinete Literário, edificado em 1909. Além de prédios institucionais o ecletismo foi adotado também para modernizar as fachadas das residências de famílias mais abastadas. As imagens feitas por J. Craveiro da Rua Couto Magalhães em 1911, 1914 e 1915 comprovam esse processo de transformação da arquitetura acontecido no mesmo momento que essa rua passava por intensa movimentação cultural com a instalação de um cinema.
Nas duas primeiras décadas do século 20, a cidade de Goiás se modificava arquitetonicamente e vivenciava pulsante atividade cultural: a primeira orquestra de música erudita, organizada por Nhánhá do Couto (1880–1945), estava se apresentando; o Gabinete Literário congregava os interessados em discutir literatura e em debater a produção intelectual; a revista A rosa (1907) era editada tendo à frente principalmente mulheres, como Cora Coralina (1889–1985) e Leodegária de Jesus (1889–1978); ocorreu a instalação do Cinema Goyano em 1909, trazendo referências de novas formas culturais e padrões visuais; a fotografia era absorvida com entusiasmo pela população; houve também a inauguração do monumento da Cruz do Anhanguera – solenidade fotografada por J. Craveiro em 1918. Vivenciava-se uma fase de agitação e de modernização do ambiente social da cidade, que mostrava sinais de receptividade às novidades trazidas pela modernidade da República, no mesmo instante que se afirmavam os contornos bandeirantistas da identidade cultural do povo goiano, dentro do grande projeto de definição da identidade nacional. O trabalho de J. Craveiro dialoga com o movimento cultural típico desse momento particular da história da cidade, sendo ela, a cidade, um de seus assuntos prediletos.
É preciso lembrar que, décadas depois, a paisagem da cidade de Goiás foi enfocada como elemento da identidade cultural do Estado e transformada em assunto pelos artistas plásticos regionalistas vilaboenses: Octo Marques (1915–1988), Goiandira do Couto (1915–2011) e João do Couto (1923–?); sendo também representada pelos modernistas sediados em Goiânia: Nazareno Confaloni (1917–1977), D.J. Oliveira (1932–2005), Cléber Gouvêa (1942–2000), entre outros. No terreno da literatura, Cora Coralina, em seu livro de estreia, Poemas dos becos de Goiás e estórias mais, publicado em 1965, retratou em suas imagens poéticas aspectos de sua cidade natal.
É essencialmente moderna a relação travada por J. Craveiro com a cidade de Goiás por meio da fotografia e dos recursos que ela disponibilizava, como o disparador automático que permitia ao fotógrafo ter domínio sobre o tempo e se fotografar posando como elemento da composição da imagem. Fotografava a si mesmo e a cidade simultaneamente. Ora se posicionava nas regiões periféricas do campo enquadrado, ora estava no centro, ora quase escondido, ora próximo, ora distante, ora
em movimento de andar, ora parado. Trajando sempre impecáveis ternos, inclusive branco, e portando chapéu na cabeça, imprimia nas fotos as referências de sua classe social, postas em relevo também pelas poses elegantes e aristocráticas, que combinavam com seu pequeno porte físico, sugerindo pessoa muito cortês, delicada e refinada. Em suas imagens vemos que J. Craveiro performava para a câmera, posando de modo tão cuidadosamente requintado que parece ensaiado, sendo essa uma característica de sua linguagem.
De certa forma, guardadas as distâncias de espaço e tempo, conceituais e contextuais, a postura tomada por J. Craveiro quando concentrado sobre o ambiente citadino, lembra a figura do dândi, ao mesmo tempo se afinando com ela e dela destoando, e com o conceito de flaneur elaborados por Charles Baudelaire ao pensar a situação do artista no momento de formação do modernismo diante das transformações de Paris no século 19. O dândi é um personagem que se compraz em exibir publicamente sua elegância e requinte, e o flaneur é aquele que anda sem compromisso pela cidade em transformação, absorvendo sua estética, seu fluxo, se contaminando com a vida das ruas, caminha pelo prazer de caminhar ociosamente, divagando sobre a vida. As imagens me levam a crer que era assim que Craveiro andava pelas ruas da cidade de Goiás, a fotografar pelo prazer de fotografar, sem compromisso com trabalho. Há, é claro, diferenças entre os dois, Baudelaire e Craveiro. O dândi representado por Craveiro não é o homem embriagado e transtornado pelas modificações causadas pelo domínio do capital, melancólico no meio da multidão, soturno e descrente com o progresso da modernidade, além do mais são incomparáveis as transformações realizadas em Paris e na cidade de Goiás, às quais os dois autores respondem. Na produção do fotógrafo amador goiano, o deambular revela o frescor da descoberta da paisagem (urbana ou natural) como construção cultural que se altera com a presença humana.
O olhar poético de J. Craveiro estava mais direcionado à cidade esvaziada, ao momento em que a arquitetura ganha protagonismo, apesar de haver sempre pessoas em suas fotografias afirmando que a experiência humana modifica, define e anima o espaço. Às vezes pessoas solitárias, ou o próprio fotógrafo, outras vezes são grupos coesos ou acidentais transitando pelos largos e ruas. As grandes concentrações humanas aparecem somente nos registros das festas religiosas ou cívicas e das manifestações folclóricas como cavalhadas, dança do tapuia, folia do Divino. Grupos menores aparecem nas fotografias feitas durante passeios e piqueniques pelos arredores da cidade, e nos registros do seio familiar, que oferecem a dimensão da intimidade. Foi assim, ao seu modo amador, que documentou a vida social da cidade de Goiás na década de 1910.
Uma parcela importante da produção de J. Craveiro é formada pelas fotografias feitas durante excursões à Serra Dourada, formação rochosa que emoldura a fronteira sul do município de Goiás. Essas imagens mostram o hábito dos vilaboenses de formar caravanas anuais para subir as encostas íngremes da serra, a fim de acampar, pelo período de uma a duas semanas, no local de mata onde nascia água em meio ao ambiente árido e inóspito. O trabalho de J. Craveiro durante as estadas na Serra Dourada tinha, em primeiro momento, o aspecto puramente documental, registrando o cotidiano do acampamento, o hasteamento da Bandeira Nacional com salva de tiros e as encenações de fatos históricos teatralizados como brincadeiras por aqueles grupos de homens, que se comportavam como expedicionários em missões longínquas, em conformidade com o imaginário da época. Se ateve também em documentar exemplares da flora, como os majestosos buritis e buritis maracanãs nas veredas, o raro papiro e a medicinal arnica, plantas típicas do cerrado de altitude da Serra Dourada. Em segundo momento se pôs a elaborar ensaios fotográficos de cunho autoral.
Os títulos das fotografias da Serra Dourada demonstram como ele lia e interpretava as formações rochosas da paisagem pelo aspecto geológico (desafio à gravidade, um bloco escorado, os três gigantes e seu séquito), pela projeção figurativa do animal (cabeça de burro, o camelo, chapéu de sapo, diálogo de monstros, dois animais), pela arquitetura (torre de Pizza, a pirâmide, exótico trampolim, estranho púlpito, duas colunas, a escada, babilônica janela, o portão do inferno). De certa maneira suas interpretações evocam imagens mitológicas, antiquíssimas, e aí, nesse terreno, os homens civilizados passam a ser dominadores de uma natureza antes inconquistável.
Nas fotografias da Serra Dourada estão presentes também os homens, posicionados no topo ou em alturas elevadas ou locais de difícil acesso, mostrando o completo domínio sobre aquele território e celebrando a narrativa bandeirantista, que era muito reproduzida pelos veículos de conhecimento e informação da época. Exibidos como personagens de alguma maneira heroificados, os homens, entre eles o próprio fotógrafo, estão vestidos com ternos e portam chapéus nas cabeças, como se estivessem a passeio na cidade, as longas botas que calçam denunciam os perigos do sertão. Posam com garbo e elegância, revelando intimidade com a fotografia e coragem para vencer os obstáculos impostos pela altitude e aspereza das rochas. As composições das cenas e as distribuições ritmadas dos homens sobre as rochas da paisagem parecem estudadas pelo fotógrafo a cada tomada: um posa de frente, outro de lado, um sentado, e mais outro com as mãos no bolso, e um último com a mão na cintura, todos meticulosamente posicionados em uma estrutura que regula alturas, distâncias e profundidades, lembrando a marcação teatral, o que torna a paisagem um palco e qualifica ainda mais o aspecto de encenação sugerido pelas imagens.
A formação rochosa mais intrigante pelo ponto de vista geológico era também o mais significativo símbolo natural do Estado de Goiás. A chamada Pedra da Balança foi fotografada por J. Craveiro em 1913, 1914 e em 1915 – ano em que ele a batizou com o nome de pedra “Goyania”, em referência ao grandioso poema homônimo, de autoria de Manuel Lopes de Carvalho Ramos (1864–1911), pai do escritor Hugo de Carvalho Ramos (1895–1921), escrito em 1896 cantando a história da chegada bandeirante à terra dos indígenas Goiá. A pedra-monumento localizada no alto da serra em situação de frágil equilíbrio, apoiada apenas sobre três pequenas pedras, recebeu uma placa de batismo confeccionada por J. Craveiro com as letras que ele cuidadosamente desenhou, aplicadas com tachas metálicas sobre uma superfície de madeira, e assim foi fotografada para a posteridade. Goyania referia-se ao local de encontro dos goianos e de culto da sua identidade cultural, definia o estado de espírito do homem nascido no sertão de Goiás, marcado pela presença imponente da natureza, pelo isolamento imposto pelas grandes distâncias dos principais centros urbanos do país. A intervenção de J. Craveiro na modificação do título do topônimo de Pedra da Balança para Goyania, operou diretamente na imaginação social.
Do conjunto de fotografias tomadas das formações rochosas da Serra Dourada, J. Craveiro produziu dezenas de cópias que foram coloridas, por ele, à mão, e montadas em uma espécie de álbum feito com páginas de cartolina e cantoneiras feitas com linhas de bordar. Na busca por um grau maior de realismo da imagem, a paleta faz referência ao ambiente cromático predominante na paisagem, o verde rebaixado em harmonia com os ocres desidratados e amarronzados pétreos. Se trata da gênese do processo artístico de pesquisa da cor local que caracterizará o trabalho de uma parcela da produção modernista goiana, realizada mais de três décadas depois. Luiz Curado não esclarece quais materiais foram usados pelo fotógrafo para colorir as fotografias, e nem mesmo o ano em que foram executadas. As cópias coloridas por J. Craveiro exibem claramente seu processo de pesquisador, sua vontade de experimentar e o alcance de sua curiosidade, comprovam que sua investigação estética era baseada em sua própria inquietação e pulsão criativa.
A difusão da obra fotográfica de Joaquim Craveiro, por sua própria condição de amador, sempre foi escassa, e se não fosse pelas ações de Luiz Curado, teria ficado completamente esquecida. Curado tornou-se, em 1952, professor fundador e diretor da Escola Goiana de Belas Artes (EGBA), primeira instituição de arte na região Centro-Oeste do Brasil. Sob sua regência, a EGBA foi responsável por amalgamar o repertório goiano das artes visuais em função de elaborar um discurso próprio do modernismo feito em Goiás, que incorporava as inovações do modernismo europeu sem romper com as tradições popular, rural e indígena, e que dialogava intensamente com a fotografia, modalidade visual essencialmente moderna que era disciplina obrigatória a todos os cursos ministrados pela Escola.
O trabalho de j. Craveiro foi exibido nas duas grandes exposições realizadas em Goiânia pela Escola Goiana de Belas Artes com curadoria de Luiz Curado, Nazareno Confaloni e Gustav Ritter: Exposição Inaugural da EGBA, realizada em 1953; Exposição do Congresso Nacional de Intelectuais, realizada em 1954 – principal marco do modernismo nas artes plásticas em Goiás. Nas duas mostras a fotografia gozava do estatuto de arte, superando a dúvida e a desconfiança que pairava, até aquela época, sobre o valor artístico das imagens produzidas por meios técnicos, ainda mais em ambiente provinciano como a jovem Goiânia.
Ao trazer a produção de J. Craveiro para o presente, apresentando-a mais de um século depois dela ter sido produzida, o Goyazes Festival de Fotografia, quer pensar o campo de interrelação entre fotografia, artes visuais e história, historicamente construído pela Escola Goiana de Belas Artes, em Goiânia na década de 1950, quando a cidade se consolidava como um espaço moderno e importante centro de cultura.
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