Luiz Pucci – É favor me olhar com cuidado é o título da presente exposição, cuja proposta curatorial vem oferecer ao público uma seleção de cinquenta e seis retratos fotográficos individuais ou coletivos, escolhidos em um álbum pertencente à coleção do autor conservada hoje no Museu da Imagem e do Som de Goiás. É favor me olhar com cuidado refere-se à mensagem que o autor inseriu na primeira página do mesmo álbum. Tal um aviso enigmático, surpreendente, essa mensagem pode ser lida e compreendida num duplo sentido.
De um lado, devido ao anseio do fotógrafo em preservar a memória do seu trabalho, esse cuidado se direciona para quem pretende manusear o álbum composto por retratos dos seus conterrâneos produzidos entre 1947 e 1955, antes de se mudar com toda a sua família para a cidade de Inhumas. Por outro lado, essa mensagem pode igualmente sugerir, de modo implícito, um cuidado do olhar, uma atenção para ficar atento ao virar cada página deste um relicário precioso, ao observar esses retratos maioritariamente anônimos. Este álbum remete à contribuição de Hilda Pucci, a sua esposa, que auxiliava o fotografo, e pintava cada fotografia antes dela ser inserida em um caderno da Kodak, cada página de uma cor: “Então, a gente ia colorir a fotografia, pegava um pincel, molhava o pincel assim, um pouco com água, ao passando, ficava muito bonito!”[1] Assim, os goianos foram aos poucos, adquirindo o hábito de encomendar a Luís Pucci um retrato para celebrar, se promover ou simplesmente manter vivo um registro íntimo, um momento, uma lembrança ou um evento importante de suas vidas. Aceitaram o desafio de pausar diante da câmera posta em seu estúdio, na Avenida 24 de Outubro, em Campinas.
Esse olhar cuidadoso desperta uma lembrança individual ou coletiva em latência. Ele contempla o desejo de reunir e dar visibilidade, em um único caderno, às fotografias de pessoas e por extensão aos eventos que atravessam a nossa vida. Tempo de um olhar contemplativo, silencioso e concentrado, que reativa nossa memória em dormência, em um tempo fora do tempo. Nesse sentido, esse desejo se materializa na criação de uma arte da lembrança, ou seja, uma arte que encontra a sua expressão tanto pela palavra quanto pela imagem, independentemente da língua ou da cultura. Ela surge de forma inesperada num lugar onde “se precisa ir respirar, sonhar e esticar as horas para o infinito” [1] que o poeta Charles Baudelaire evoca em seus Pequenos poemas em prosa. Um olhar a todos nós, evidente e no mesmo tempo estrangeiro. Imagem cristal, essa lembrança ecoa nos rostos congelados expostos. Estamos tomados de repente por uma sensação estranha, como postos diante do limiar imagético
De Pucci, sabemos poucas coisas. Assim como uma grande parte das coleções conservadas no acervo do Museu da Imagem e do Som, existe ainda hoje uma escassez de estudos e de pesquisas sobre os fotógrafos goianos e suas respectivas obras. Luiz Pucci nasceu em 1919 e faleceu em 1978. Recém-chegado na capital goiana em 1947, ele se forma sob a tutela do fotógrafo Sílvio Berto que já goza de uma certa notoriedade, tanto em relação às encomendas oficiais, quanto nas demandas crescentes de retratos das mais importantes famílias da cidade em sua época. Hilda Pucci declara em entrevista concedida ao Museu da Imagem e do Som, ser notável a diversidade dos interesses do fotógrafo. No entanto, ao retratar os fregueses em seu estúdio, chegou a pensar o gênero “retrato fotográfico” não como um mero documento ou registo, mas como o resultado indissociável de uma prática artística: “As fotografias. Eram quadros, quadros grandes, que ele punha. Eu fazia esses quadros para ele. [Ele] pegava as fotografias de casamento, de aniversário, formatura. Disso tudo, ele fazia a reportagem, então, ele era o fotógrafo.” [2] Nesse sentido, essa coleção de retratos deve ser entendida como perfeito exercício de agenciamento, lembrando as antigas vitrines de estúdio que apresentavam ao passante um painel de fotografias mais “artísticas”, enquanto os demais álbuns existentes serviam como mostruários de poses.
A exposição é divida por vários temas, seguindo a proposta curatorial que deu início à exposição idealizada por Edward Steichen pelo MoMA em 1955: “The famíly of men” [A família do homem], que percorre a vida humana, do nascimento até a morte e, consagrou o movimento conhecido como Fotografia Humanista. Mas, aqui, nada de morte para celebrar e, sim, a vida. Uma celebração que ganha ainda mais ênfase na linda série de fotopinturas. Mas, torna-se impossível não se deixar afetar por todos os retratos, celebrando tanto a beleza e a delicadeza feminina acrescida pela camada colorida aplicada no papel fotográfico, quanto o charme inquieto masculino, remetendo à moda do glamour das atrizes e atores de cinema da década de quarenta, ambos imortalizados pelo famoso estúdio parisiense, o famoso Studio Harcourt. Ou ainda os rituais de noivados, de casamento, de batismo, de primeira comunhão. Pois, como o relata Hilda Pucci: “[…] Era um ambiente, era uma sala grande, né, muito grande, com cortinas. Tinha um quadro da primeira comunhão, o Cristo; a primeira comunhão das crianças que tiravam fotografia. Tinha as máquinas, o tapete, a mesinha e um tapete, era muito simples o estúdio dele, era muito arrumadinho.”[1]
Ressalta-se ainda o interesse do fotógrafo em capturar, na fugacidade do instante decisivo, o afeto mais sincero, às vezes ingênuo, que alimenta ainda hoje, o imaginário fotográfico da infância: “É uma fotografia assim que pega a criança e veste, rindo, chorando, então, ele era um trabalho assim que aqui em Goiânia, era só ele que fazia. Era com essa máquina pequena que ele fazia. Essa aqui. Quando ele queria que a criança risse, [ele] brincava.” Luiz Pucci construiu esse imaginário todo por meio desses retratos de crianças, estáticos, com poses rígidas ou encenados, acompanhados de um brinquedo. Mas, também capturando e negociando a expectativa que o público adulto espera na finalização do retrato: um desejo negociado entre o fotógrafo e ele mesmo, cuja representação se carrega de uma beleza um tanto melancólica e presa num tempo já passado de um cenário obsoleto: “Era assim: as cortinas, era a parede, tinham os quadros […], não eram pintados na parede não, [eles], pintavam e punham a cortina e faziam aquele fundo, aí, puxava mais a cortina, puxava menos, né? Tinha uma mesinha, ele sentava as crianças para tirar fotografia. […] Isso aqui era um quadro, aqui a mesinha, tinha um cavalinho para as crianças.”[2]
A beleza nostálgica de todos esses retratos escolhidos para compor essa exposição atiça um sentimento de saudade. Esse fenômeno singular aparece especificamente no ápice do encontro entre a picada do espinho doloroso, descrito pelo poeta Almeida Garett como “um mal que se goza e uma felicidade que se padece” e, este punctum fotográfico Barthesiano: esse ponto aguça a memória do que nos falta por não existir mais. Tensão temporal esta, congelada em uma prova que tenta inexoravelmente manter-se vivo o que não para de fugir de modo imprevisto, na reminiscência de uma lembrança efêmera, sempre sujeita ao esquecimento. A exposição Luiz Pucci – É favor me olhar com cuidado foi pensada antes de tudo enquanto convite, um convite para deleitar-se, dentro do espaço expográfico, com as experiências sensíveis que nós decoremos do mundo e do tempo. Saudade de um tempo perdido, sobrevivendo na frágil camada do papel, e que se alimenta do passado para melhor esboçar o seu futuro.